Da “deslugarização”, ao abraço eterno
Muita coisa tem vindo a mudar no que à morte e seus contextos diz respeito.
Antes de mais, vivemos por mais tempo nesta terra. A longevidade é acordeão sempre a dilatar-se. O desafio, hoje, para muita gente, não é viver por muitos anos, mas conseguir viver bem os muitos anos que a vida oferece.
Temos vindo a assistir (uso uma expressão feliz de José Nuno Silva) à “deslugarização” da morte: das mãos dadas a um familiar próximo, em casa, rodeado de carinhos e laços afetivos, no ambiente onde agimos, criamos amizades e vivemos, passamos para o hospital, para a clínica, ou para as instituições de idosos. A casa familiar já não abraça os que morrem, aliás, já nem os acolhe depois de mortos, que a Capela Mortuária há muito se impôs como lugar para a última passagem.
“A vida moderna [comenta Vítor Coutinho], traz consigo a solidão dos moribundos. […] O medo de solidão […], nas sociedades ocidentais e urbanas, é acentuado pelo facto de termos tornado o morrer demasiado esterilizado, frio, mecanizado, impessoal”.
A morte, como assunto e como evento, tornou-se tabu para as crianças; está ausente, salvo honrosas exceções, da reflexão entre adultos. É um “não-assunto”, a menos que se trate de filmes de ação, serial killer’s, notícias de tragédias… Sempre longe, contudo, quer falemos de ficção ou de drama real.
Reforçando quanto acima mencionado, o morrer é cada vez mais uma questão médica; perdeu naturalidade. Ou seja, além de ter trocado de espaços, tem vindo a trocar de mãos, não já as de casa, mas as dos cuidadores. Essa naturalidade fica ainda mais ameaçada, quando os condimentos são os da distanásia (prolongamento artificial, forçado, medicamentoso… da vida), ou os da eutanásia (acelerar o processo, normalmente com base em dois argumentos, misturados quase sempre: doença terminal, irrecuperável; fugir a sofrimentos quando, afinal, a esperança já se foi).
Há quem diga (Artur Manso) que, “na atualidade, até se exclui da morte aquele que está a morrer”. O que não é difícil: os medicamentos facilmente conseguem a despersonalização do morrer, tornam cada vez mais difícil que o sujeito seja sujeito da sua própria morte.
E que dizer dos cemitérios (= dormitórios)?! – Hoje ainda são importantes, no plano administrativo, cultural, arquitetónico, urbanístico e paisagístico, na perspetiva da higiene e saúde públicas, na vertente social… E com uma marca profunda no que diz respeito à dimensão religiosa (bastará pensar-se no dia de Todos os Santos – feriado – ou no dia dos fiéis defuntos, ou em todos os dias em que alguém procura na campa um falecido gravado na alma).
Mas, no futuro, como serão os cemitérios sem gente disposta a cuidar das campas?! Mais e melhor: quando todos se quiserem reduzidos a cinzas?!
Bem, o mundo vai mudando (e não esgotamos a análise…). Tem mudado muito. Continuará a mudar.
Mas há coisas que não mudam: com mais ou menos anos, morreremos; às mãos dos técnicos de saúde e/ou de instituições, ou no calor do larario (dos deuses do lar); empurrados, retardados, ou de forma natural; querendo ou não falar sobre o assunto; donos ou não do nosso próprio morrer.
Sem mais delongas – que o tema vai avançado – que Deus (chegada a hora) nos acolha. Acolha os nossos que já partiram. Acolha quantos nesta vida amámos. Acolha quantos precisam das nossas orações.
Que a Mãe a todos abra os braços. Terminadas as canseiras, preocupações, dores e lutas desta vida, seja de festa eterna a vida outra, para a qual, mais cedo ou mais tarde, seremos convocados.
E aí possamos ser sujeitos do nosso viver, em júbilo, mergulhados apenas e só no amor dos irmãos, no amor da Mãe e no amor infinito de Deus.
Cón. José Paulo Leite de Abreu
Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro
Da “deslugarização”, ao abraço eterno
Muita coisa tem vindo a mudar no que à morte e seus contextos diz respeito.
Antes de mais, vivemos por mais tempo nesta terra. A longevidade é acordeão sempre a dilatar-se. O desafio, hoje, para muita gente, não é viver por muitos anos, mas conseguir viver bem os muitos anos que a vida oferece.
Temos vindo a assistir (uso uma expressão feliz de José Nuno Silva) à “deslugarização” da morte: das mãos dadas a um familiar próximo, em casa, rodeado de carinhos e laços afetivos, no ambiente onde agimos, criamos amizades e vivemos, passamos para o hospital, para a clínica, ou para as instituições de idosos. A casa familiar já não abraça os que morrem, aliás, já nem os acolhe depois de mortos, que a Capela Mortuária há muito se impôs como lugar para a última passagem.
“A vida moderna [comenta Vítor Coutinho], traz consigo a solidão dos moribundos. […] O medo de solidão […], nas sociedades ocidentais e urbanas, é acentuado pelo facto de termos tornado o morrer demasiado esterilizado, frio, mecanizado, impessoal”.
A morte, como assunto e como evento, tornou-se tabu para as crianças; está ausente, salvo honrosas exceções, da reflexão entre adultos. É um “não-assunto”, a menos que se trate de filmes de ação, serial killer’s, notícias de tragédias… Sempre longe, contudo, quer falemos de ficção ou de drama real.
Reforçando quanto acima mencionado, o morrer é cada vez mais uma questão médica; perdeu naturalidade. Ou seja, além de ter trocado de espaços, tem vindo a trocar de mãos, não já as de casa, mas as dos cuidadores. Essa naturalidade fica ainda mais ameaçada, quando os condimentos são os da distanásia (prolongamento artificial, forçado, medicamentoso… da vida), ou os da eutanásia (acelerar o processo, normalmente com base em dois argumentos, misturados quase sempre: doença terminal, irrecuperável; fugir a sofrimentos quando, afinal, a esperança já se foi).
Há quem diga (Artur Manso) que, “na atualidade, até se exclui da morte aquele que está a morrer”. O que não é difícil: os medicamentos facilmente conseguem a despersonalização do morrer, tornam cada vez mais difícil que o sujeito seja sujeito da sua própria morte.
E que dizer dos cemitérios (= dormitórios)?! – Hoje ainda são importantes, no plano administrativo, cultural, arquitetónico, urbanístico e paisagístico, na perspetiva da higiene e saúde públicas, na vertente social… E com uma marca profunda no que diz respeito à dimensão religiosa (bastará pensar-se no dia de Todos os Santos – feriado – ou no dia dos fiéis defuntos, ou em todos os dias em que alguém procura na campa um falecido gravado na alma).
Mas, no futuro, como serão os cemitérios sem gente disposta a cuidar das campas?! Mais e melhor: quando todos se quiserem reduzidos a cinzas?!
Bem, o mundo vai mudando (e não esgotamos a análise…). Tem mudado muito. Continuará a mudar.
Mas há coisas que não mudam: com mais ou menos anos, morreremos; às mãos dos técnicos de saúde e/ou de instituições, ou no calor do larario (dos deuses do lar); empurrados, retardados, ou de forma natural; querendo ou não falar sobre o assunto; donos ou não do nosso próprio morrer.
Sem mais delongas – que o tema vai avançado – que Deus (chegada a hora) nos acolha. Acolha os nossos que já partiram. Acolha quantos nesta vida amámos. Acolha quantos precisam das nossas orações.
Que a Mãe a todos abra os braços. Terminadas as canseiras, preocupações, dores e lutas desta vida, seja de festa eterna a vida outra, para a qual, mais cedo ou mais tarde, seremos convocados.
E aí possamos ser sujeitos do nosso viver, em júbilo, mergulhados apenas e só no amor dos irmãos, no amor da Mãe e no amor infinito de Deus.
Cón. José Paulo Leite de Abreu
Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro