Não é serviço… é um modo de amar os outros!
Mia Couto dispensa apresentações. Lê-lo, é um deleite. Faz-nos muito boa companhia e junta as letras tornando-as fofas para a vista e para o espírito.
Hoje vou invadir-lhe o espólio, para saborearmos um pedaço do conto “A avó, a cidade e o semáforo”. Reza assim:
“Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:
– E vai ficar em casa de quem? ….
– Fico no hotel, avó.
– Hotel? Mas é casa de quem?
Explicar, como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: casa de ninguém?
– Ou melhor, avó: é de quem paga – palavreei, para a tranquilizar.
Porém, só agravei – um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?
A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz:
– E lá, quem lhe faz o prato?
– Um cozinheiro, avó.
– Como se chama esse cozinheiro?
Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anônima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinheiro de que nem o rosto se conhece.
– Cozinhar não é serviço, meu neto – disse ela. – Cozinhar é um modo de amar os outros”.
E o conto lá prossegue…
Sei que este amor pelos outros, que na cozinha se consubstancia, nada tem de simples ou de superficial. Um dia, dois, uma semana, duas, um ano e outro ano, uma vida… a tentar adivinhar gostos, a tentar acertar com paladares, a tentar agradar, a tentar consolar, a tentar manter força, vida, saúde… em quem à mesa se senta.
Uma enorme gratidão se deve a quem vira tachos e panelas, descasca e destona, tempera e aquece, põe brasas e dá voltas à carne, põe o peixe a grelhar ou o bacalhau a assar…
A tudo isso se junta uma vida no supermercado, ou nas lojas, no talho ou na peixaria, na padaria ou no mercadinho… E há que pôr a mesa, com toalha que se vai lavando, há que arrumar a mesa, a loiça, os apetrechos de cozinha… E há que passar o chão a pano… Ah, e levar o lixo…
Quantas horas, por dia, em muitos casos; quanta canseira; quanto trabalho tantas vezes não apreciado, não vistoso, não devidamente agradecido.
A quem cozinha, mais uma vez, muito e muito obrigado. E se o fazem bem, tudo fica perdoado, pelo bem que sabe: o colesterol, os triglicéridos, as tensões altas, os diabetes, o ácido úrico…
Caberá a cada um dosear o paraíso que uma boa mesa espelha.
Mas, já agora, o lençol da gratidão também se estende a quem cuida do bem-estar de todos por outros caminhos, a quem põe a roupinha lavada, a casa asseada e limpa, a higiene e o conforto no lar, ou nos espaços que ocupamos…
Muito mais do que serviços, se feitos com dedicação e carinho, por alma grande, são formas de amar.
Às vezes sonhamos com grandes feitos. Às vezes pensamos que só os poderosos, os importantes, os grandes craques ou artistas, os ricos, os que fazem obras megalómanas é que fazem avançar o mundo e dão sentido às suas vidas. Nada mais falacioso! Todos podemos ser grandes. Todos podemos ser heróis.
Há imensos heróis e heroínas: todos os que, no dia a dia, com gestos e serviços simples, embrulhados num coração generoso, constroem, no escondimento – porventura, o grande monumento do amor.
A esses(as), ajoelhado, agradeço!
Cón. José Paulo Leite de Abreu
Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro
Não é serviço… é um modo de amar os outros!
Mia Couto dispensa apresentações. Lê-lo, é um deleite. Faz-nos muito boa companhia e junta as letras tornando-as fofas para a vista e para o espírito.
Hoje vou invadir-lhe o espólio, para saborearmos um pedaço do conto “A avó, a cidade e o semáforo”. Reza assim:
“Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:
– E vai ficar em casa de quem? ….
– Fico no hotel, avó.
– Hotel? Mas é casa de quem?
Explicar, como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: casa de ninguém?
– Ou melhor, avó: é de quem paga – palavreei, para a tranquilizar.
Porém, só agravei – um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?
A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz:
– E lá, quem lhe faz o prato?
– Um cozinheiro, avó.
– Como se chama esse cozinheiro?
Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anônima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinheiro de que nem o rosto se conhece.
– Cozinhar não é serviço, meu neto – disse ela. – Cozinhar é um modo de amar os outros”.
E o conto lá prossegue…
Sei que este amor pelos outros, que na cozinha se consubstancia, nada tem de simples ou de superficial. Um dia, dois, uma semana, duas, um ano e outro ano, uma vida… a tentar adivinhar gostos, a tentar acertar com paladares, a tentar agradar, a tentar consolar, a tentar manter força, vida, saúde… em quem à mesa se senta.
Uma enorme gratidão se deve a quem vira tachos e panelas, descasca e destona, tempera e aquece, põe brasas e dá voltas à carne, põe o peixe a grelhar ou o bacalhau a assar…
A tudo isso se junta uma vida no supermercado, ou nas lojas, no talho ou na peixaria, na padaria ou no mercadinho… E há que pôr a mesa, com toalha que se vai lavando, há que arrumar a mesa, a loiça, os apetrechos de cozinha… E há que passar o chão a pano… Ah, e levar o lixo…
Quantas horas, por dia, em muitos casos; quanta canseira; quanto trabalho tantas vezes não apreciado, não vistoso, não devidamente agradecido.
A quem cozinha, mais uma vez, muito e muito obrigado. E se o fazem bem, tudo fica perdoado, pelo bem que sabe: o colesterol, os triglicéridos, as tensões altas, os diabetes, o ácido úrico…
Caberá a cada um dosear o paraíso que uma boa mesa espelha.
Mas, já agora, o lençol da gratidão também se estende a quem cuida do bem-estar de todos por outros caminhos, a quem põe a roupinha lavada, a casa asseada e limpa, a higiene e o conforto no lar, ou nos espaços que ocupamos…
Muito mais do que serviços, se feitos com dedicação e carinho, por alma grande, são formas de amar.
Às vezes sonhamos com grandes feitos. Às vezes pensamos que só os poderosos, os importantes, os grandes craques ou artistas, os ricos, os que fazem obras megalómanas é que fazem avançar o mundo e dão sentido às suas vidas. Nada mais falacioso! Todos podemos ser grandes. Todos podemos ser heróis.
Há imensos heróis e heroínas: todos os que, no dia a dia, com gestos e serviços simples, embrulhados num coração generoso, constroem, no escondimento – porventura, o grande monumento do amor.
A esses(as), ajoelhado, agradeço!
Cón. José Paulo Leite de Abreu
Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro