Os filhos do moleiro
Fiquei agradado ao ouvi-la pela primeira vez. Mas deixei correr. Da segunda vez que voltou à mesa, travei o narrador e pedi-lhe a paciência de uma narrativa soletrada, para poder fixar bem o conteúdo, esse mesmo que agora partilho.
Já todos sabem que gosto muito de estórias, daquelas que considero veículo atrativo para mensagens sublimes. E também gosto de agradecer a quem me delicia com essas pérolas.
Então aqui vai mais uma – agradecimento declarado.
O pai deixou, como herança, aos dois filhos, o moinho. Um dos filhos era casado, e tinha dois filhos; o outro era solteiro. Ambos os herdeiros eram trabalhadores. Solidários. Irmãos no sangue, irmãos no ofício, irmãos na labuta afincada.
Ao fim do dia, dividiam a “maquia” metade para cada um. Entenda-se por “maquia” (nós que há muito não vemos um moinho a trabalhar precisamos de uma ajudinha do dicionário) a porção de farinha que os moleiros guardam para si, como forma de pagamento por serviço prestado.
A determinada altura o irmão solteiro começou a matutar: isto não está bem. O meu irmão é casado, tem mulher e filhos, muitas bocas para alimentar e nós estamos aqui a dividir os proveitos em partes iguais.
Pegava então em parte da sua parte e colocava no saco do irmão.
O irmão casado, por sua vez, começou a matutar: isto não está certo. O meu irmão não tem quem cuide dele (ao contrário de mim, que me delicio com os desvelos da minha esposa), não tem ninguém que o ajude, vai precisar de economias para calçar o futuro…
E assim pensando, retirava parte do seu grão e ía colocá-lo no saco do irmão.
As generosidades recíprocas (veladas, misteriosas, não para “vistaço”, mas por mero e desinteressado bem querer) foram-se repetindo vezes sem conta.
Até que uma noite… encontraram-se ambos, movidos pela acostumada vontade da partilha…
Olhando-se, percebendo-se, lendo-se um ao outro, abraçaram-se fraternalmente.
Claro que a estória poderia ser diferente: um dos irmãos, por exemplo, poderia ter sacado moinho ao pai puxando-o só para ele; ou qualquer um, ou os dois, poderia(m) passar a vida a lamentar-se da pouca sorte e a reivindicar, por ter mais despesas, um, por não ter sequer com quem desabafar, o outro; poderiam ter pegado no metro para avaliar quem trabalhava mais, em busca de maior lucro; também se poderiam ter zangado, um a ter que indemnizar o outro para acabar com os conflitos; poderia a mulher do casado ter-se metido de permeio a desfazer a ligação do irmãos; pela calada da noite, poderia qualquer um dos dois, em vez de aumento no saco do outro, provocar-lhe um arrombo…
Quantas situações destas não conhecemos nós.
Esqueçamos a maldade humana, tantas cores ela tem. Fiquemos por agora e só com estes dois irmãos, filhos do moleiro, a quem o pai deixou o moinho. E continuemos a remoer, conhecidos que estão os antecedentes da conclusão: lendo-se um ao outro, abraçaram-se fraternalmente!
Cónego José Paulo Leite de Abreu, Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro
Os filhos do moleiro
Fiquei agradado ao ouvi-la pela primeira vez. Mas deixei correr. Da segunda vez que voltou à mesa, travei o narrador e pedi-lhe a paciência de uma narrativa soletrada, para poder fixar bem o conteúdo, esse mesmo que agora partilho.
Já todos sabem que gosto muito de estórias, daquelas que considero veículo atrativo para mensagens sublimes. E também gosto de agradecer a quem me delicia com essas pérolas.
Então aqui vai mais uma – agradecimento declarado.
O pai deixou, como herança, aos dois filhos, o moinho. Um dos filhos era casado, e tinha dois filhos; o outro era solteiro. Ambos os herdeiros eram trabalhadores. Solidários. Irmãos no sangue, irmãos no ofício, irmãos na labuta afincada.
Ao fim do dia, dividiam a “maquia” metade para cada um. Entenda-se por “maquia” (nós que há muito não vemos um moinho a trabalhar precisamos de uma ajudinha do dicionário) a porção de farinha que os moleiros guardam para si, como forma de pagamento por serviço prestado.
A determinada altura o irmão solteiro começou a matutar: isto não está bem. O meu irmão é casado, tem mulher e filhos, muitas bocas para alimentar e nós estamos aqui a dividir os proveitos em partes iguais.
Pegava então em parte da sua parte e colocava no saco do irmão.
O irmão casado, por sua vez, começou a matutar: isto não está certo. O meu irmão não tem quem cuide dele (ao contrário de mim, que me delicio com os desvelos da minha esposa), não tem ninguém que o ajude, vai precisar de economias para calçar o futuro…
E assim pensando, retirava parte do seu grão e ía colocá-lo no saco do irmão.
As generosidades recíprocas (veladas, misteriosas, não para “vistaço”, mas por mero e desinteressado bem querer) foram-se repetindo vezes sem conta.
Até que uma noite… encontraram-se ambos, movidos pela acostumada vontade da partilha…
Olhando-se, percebendo-se, lendo-se um ao outro, abraçaram-se fraternalmente.
Claro que a estória poderia ser diferente: um dos irmãos, por exemplo, poderia ter sacado moinho ao pai puxando-o só para ele; ou qualquer um, ou os dois, poderia(m) passar a vida a lamentar-se da pouca sorte e a reivindicar, por ter mais despesas, um, por não ter sequer com quem desabafar, o outro; poderiam ter pegado no metro para avaliar quem trabalhava mais, em busca de maior lucro; também se poderiam ter zangado, um a ter que indemnizar o outro para acabar com os conflitos; poderia a mulher do casado ter-se metido de permeio a desfazer a ligação do irmãos; pela calada da noite, poderia qualquer um dos dois, em vez de aumento no saco do outro, provocar-lhe um arrombo…
Quantas situações destas não conhecemos nós.
Esqueçamos a maldade humana, tantas cores ela tem. Fiquemos por agora e só com estes dois irmãos, filhos do moleiro, a quem o pai deixou o moinho. E continuemos a remoer, conhecidos que estão os antecedentes da conclusão: lendo-se um ao outro, abraçaram-se fraternalmente!
Cónego José Paulo Leite de Abreu, Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro