Faltava a cereja no topo do bolo!
Tento ser positivo e espalhar esperança. Confio em Deus e esforço-me por levar a humanidade à crença em Deus, o Omnipotente, o Solícito, o Bondoso, o Clemente, o Compassivo, o infinitamente misericordioso, o amor infinito, entre nós incarnado em Jesus Cristo. Procuro sorrir e espalhar alegria, mesmo que a vida tenha os seus azedumes, às vezes traga pedregulhos, ou até mesmo tsunamis.
Mas confesso que olho com muita apreensão para a sociedade atual. Vou repetindo que, a não arrepiarmos caminho, espreitamos já o abismo, estamos já voltados para o ocaso da civilização ocidental europeia, estamos a um passo do não retorno de um inevitável desaparecimento.
Tanto se tem atacado a vida nos seus começos, tão pouco temos incentivado as “Senhoras do Ó”, tanto se tem truncado a natalidade, tanto se tem confundido paternidade responsável ou controlo de natalidade com esterilidade, que não conseguimos repor o stock geracional. Não temos uma fecundidade, por casal, de 2,3 ou, no mínimo, 2,2 filhos, para que pai e mãe se vejam perpetuados, deixando-se ainda cobertura para alguma morte prematura. Proliferam os filhos únicos, a brincarem com o espelho, irmãos deles próprios, amanhã cunhados de ninguém, tios do copy-paste, Robinson’s Cruzoe’s perdi-dos na ilha solitária em que o mundo se vai transformando.
As comunicações cada vez são mais frias, mais digitais, mais próximas dos distantes e mais distantes dos próximos. Por cada comensal, um telemóvel. Em cada quarto, um computador. As almas cada vez se cruzam menos. As vidas cada vez se partilham menos. Muitos casais estão feitos binário de comboio, linhas que andam por perto sem se cruzarem. A solidão grassa por todo o lado, ou em casas vazias, ou em caixotes cheios de vidas vazias. Falta o abraço. Falta o beijo. Falta o carinho. Falta o tempo de escuta. Falta luz no ambiente e sabor na comida que, apesar de tudo, ainda aparece no prato que uma funcionária colocou na mesa.
E agora veio o Covid, o confinamento, ainda mais confinamento, o tédio a espreitar pela fechadura, a solidão a não deixar um milímetro de parede por preencher, as trevas a pintarem o espírito, as notícias de manhã à noite, há muitas manhãs e muitas noites, a falarem sempre do mesmo: mais casos; novos casos; novas roupagens do vírus; ambulâncias em fila às portas dos hospitais; cuida-dores de saúde exaustos; caixões amontoados; lágrimas em que fecha as portas dos restaurantes, dos bares, dos serviços não essenciais; a cultura pelas ruas que sempre conheceu – as da amargura, mas agora com mais lampiões fundidos, o em-prego ameaçado, os negócios em ruína, as escolas à nora, o povo à míngua, com a fome à espreita, a carteira tísica e as contas eternamente abonadas.
Faltava mesmo a cereja no topo do bolo, com a coragem de a colocarem exatamente neste tempo em que tanto se morre, em que tanto se teme pela vida, em que tantos cuidados nos impõem (e bem!), em que tantos arriscam a vida para salvar vidas: eis a brilhante aprovação da eutanásia. Pelos vistos temos pressa em abrir mais valas, ou em conseguir cinzas. Pelos vistos ainda não nos cansamos desta cultura de morte. Pelos vistos ainda não estamos cansados de ver desaparecer gente.
Hipócrates deve estar a revolver-se no túmulo. Diz-se que vem aí para abolir juramentos falsos. Está só a tentar rejuvenescer-se, para não aparecer com ar decadente, não suceda que lhe deem ordem de regresso antes de ter cumprido a sua nova (estranha, hedionda, vergonhosa) missão: a de pôr fim a promessas de mera treta!
Não prolongar artificialmente a vida, concordo. Provocar a morte de alguém (ativa ou passivamente), é triste sintoma, mais um, de uma sociedade decadente, moribunda, tão tétrica quanto a lei que acaba de ser aprovada.
Mãe do Céu, socorro. Só tu saberás, em conversa com a Trindade, o que se poderá ainda fazer. Ajuda-nos. Ilumina-nos. Não deixeis que nos separemos de Vós!
Cónego José Paulo Leite de Abreu, Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro
Faltava a cereja no topo do bolo!
Tento ser positivo e espalhar esperança. Confio em Deus e esforço-me por levar a humanidade à crença em Deus, o Omnipotente, o Solícito, o Bondoso, o Clemente, o Compassivo, o infinitamente misericordioso, o amor infinito, entre nós incarnado em Jesus Cristo. Procuro sorrir e espalhar alegria, mesmo que a vida tenha os seus azedumes, às vezes traga pedregulhos, ou até mesmo tsunamis.
Mas confesso que olho com muita apreensão para a sociedade atual. Vou repetindo que, a não arrepiarmos caminho, espreitamos já o abismo, estamos já voltados para o ocaso da civilização ocidental europeia, estamos a um passo do não retorno de um inevitável desaparecimento.
Tanto se tem atacado a vida nos seus começos, tão pouco temos incentivado as “Senhoras do Ó”, tanto se tem truncado a natalidade, tanto se tem confundido paternidade responsável ou controlo de natalidade com esterilidade, que não conseguimos repor o stock geracional. Não temos uma fecundidade, por casal, de 2,3 ou, no mínimo, 2,2 filhos, para que pai e mãe se vejam perpetuados, deixando-se ainda cobertura para alguma morte prematura. Proliferam os filhos únicos, a brincarem com o espelho, irmãos deles próprios, amanhã cunhados de ninguém, tios do copy-paste, Robinson’s Cruzoe’s perdi-dos na ilha solitária em que o mundo se vai transformando.
As comunicações cada vez são mais frias, mais digitais, mais próximas dos distantes e mais distantes dos próximos. Por cada comensal, um telemóvel. Em cada quarto, um computador. As almas cada vez se cruzam menos. As vidas cada vez se partilham menos. Muitos casais estão feitos binário de comboio, linhas que andam por perto sem se cruzarem. A solidão grassa por todo o lado, ou em casas vazias, ou em caixotes cheios de vidas vazias. Falta o abraço. Falta o beijo. Falta o carinho. Falta o tempo de escuta. Falta luz no ambiente e sabor na comida que, apesar de tudo, ainda aparece no prato que uma funcionária colocou na mesa.
E agora veio o Covid, o confinamento, ainda mais confinamento, o tédio a espreitar pela fechadura, a solidão a não deixar um milímetro de parede por preencher, as trevas a pintarem o espírito, as notícias de manhã à noite, há muitas manhãs e muitas noites, a falarem sempre do mesmo: mais casos; novos casos; novas roupagens do vírus; ambulâncias em fila às portas dos hospitais; cuida-dores de saúde exaustos; caixões amontoados; lágrimas em que fecha as portas dos restaurantes, dos bares, dos serviços não essenciais; a cultura pelas ruas que sempre conheceu – as da amargura, mas agora com mais lampiões fundidos, o em-prego ameaçado, os negócios em ruína, as escolas à nora, o povo à míngua, com a fome à espreita, a carteira tísica e as contas eternamente abonadas.
Faltava mesmo a cereja no topo do bolo, com a coragem de a colocarem exatamente neste tempo em que tanto se morre, em que tanto se teme pela vida, em que tantos cuidados nos impõem (e bem!), em que tantos arriscam a vida para salvar vidas: eis a brilhante aprovação da eutanásia. Pelos vistos temos pressa em abrir mais valas, ou em conseguir cinzas. Pelos vistos ainda não nos cansamos desta cultura de morte. Pelos vistos ainda não estamos cansados de ver desaparecer gente.
Hipócrates deve estar a revolver-se no túmulo. Diz-se que vem aí para abolir juramentos falsos. Está só a tentar rejuvenescer-se, para não aparecer com ar decadente, não suceda que lhe deem ordem de regresso antes de ter cumprido a sua nova (estranha, hedionda, vergonhosa) missão: a de pôr fim a promessas de mera treta!
Não prolongar artificialmente a vida, concordo. Provocar a morte de alguém (ativa ou passivamente), é triste sintoma, mais um, de uma sociedade decadente, moribunda, tão tétrica quanto a lei que acaba de ser aprovada.
Mãe do Céu, socorro. Só tu saberás, em conversa com a Trindade, o que se poderá ainda fazer. Ajuda-nos. Ilumina-nos. Não deixeis que nos separemos de Vós!
Cónego José Paulo Leite de Abreu, Presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro